Admissão de terceirização em atividade-fim e o sonho que não se pode realizar

Por Raphael Miziara (Professor e Advogado) e Iuri Pinheiro (Professor e Juiz do Trabalho do TRT da 15ª Região).

A falência da economia ocidental está corroendo a crença em valores e instituições que, em outros tempos, julgávamos permanentes. Parafraseando Zigmunt Baumman, vivemos a época dos empregos líquidos, precários – sob o ponto de vista temporal e, também, material -, moldados conforme as conveniências do mercado.

Nesse cenário, forças conhecidas impõem o custo da crise aos trabalhadores. A ordem global – tal como imposta pelo FMI, Banco Mundial e OMC – remete o direito do trabalho para o banco dos réus, acusado de irracionalidade
regulativa e de produzir consequências danosas a economia. [1] Como consequência, soberanias são acocoradas pelo poder econômico e se subjugam a elas.

Prova disso é a tentativa de reforma trabalhista (PL nº 6.787/2916; PLC 38/2017) e a, não mais tão recente, Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017, que modificou e introduziu novas disposições na Lei nº 6.019/74. Como se demonstrará, esta última autorizou a terceirização da atividade-fim, para além do trabalho temporário.

O desiderato central deste texto é demonstrar, de forma objetiva, que a Lei nº Lei 6019/74, com as modificações produzidas pela nº Lei 13.429/2017, permitiu, em certa medida, a terceirização da atividade-fim, não só no caso do trabalho temporário – o que não é nenhuma novidade. Além disso, procura explanar, de forma também objetiva, as consequências da terceirização degradante.

Pois bem, o artigo 4º-A da Lei nº 6.019/74, de acordo com a redação conferida pela Lei nº 13.429/2017, assim dispõe, verbis:

Art. 4º-A Empresa prestadora de serviços a terceiros é a pessoa jurídica de direito privado destinada a prestar à contratante serviços determinados e específicos.
§ 1º A empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para realização desses serviços.
§ 2º Não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante.

Como se nota, é a empresa prestadora de serviços que contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores. Ocorre que a empresa prestadora de serviços, ao invés de, ela mesmo, contratar, remunerar e dirigir o trabalho realizado por seus trabalhadores, pode subcontratar esses serviços de contratação, remuneração e direção, com outras empresas.

Imagine-se a seguinte situação: a empresa “Ponto 1 S/A”, que tem como objeto principal a prestação de serviços educacionais, resolve contratar a empresa “Ponto 2 Ltda.” para prestação de serviços de limpeza de suas instalações. Essa segunda empresa, por sua vez, resolve contratar a empresa “Ponto 3 Ltda.” para que esta contrate, remunere e dirija os empregados que serão alocados na empresa “Ponto 1 S/A”.

Ocorre, aqui, a figura da “quarteirização”, fenômeno caracterizado pela subcontratação, pela empresa prestadora originária, de outra empresa prestadora. Nota-se que, nessa hipótese, a Lei nº 6.019/74 autorizou a terceirização na atividade-fim.

Com efeito, a atividade principal da empresa terceirizada é a prestação de serviços. Logo, se a Lei permite que a empresa terceirizada promova a subcontratação de outras empresas para realização dos serviços de contratação, remuneração e direção, ela está, em verdade, chancelando a prática de terceirização de atividade-fim pela empresa terceirizada. No exemplo dado, a empresa Ponto 2 Ltda.,com respaldo legal, nada mais fez do que terceirizar sua atividade-fim.

Em outros termos, a Lei permitiu a admissão de um trabalhador para uma tarefa concernente à atividade própria ou principal da empresa terceirizada, pois, sem sombra de dúvidas, a empresa terceirizada tem como objeto principal a prestação de serviços. Em seja, com tal prática, a empresa terceirizada “repassa” o exercício de seu núcleo para outra empresa.

Logo, a quarteirização, como se percebe, ocorre quando o tomador contrata uma empresa de prestação de serviços que, por sua vez, contrata outra entidade para fornecer pessoal necessário à execução do contrato. A quarteirização, assim, se dá quando a empresa terceirizada (contratante) contrata empresa que administra os seus serviços de terceirização. Como se nota, o fenômeno implica na transferência, por parte da empresa contratante (terceirizada), de seus serviços – de seu núcleo -, para outra empresa.

No exemplo dado, o objeto social principal da empresa “Ponto 2 Ltda.” é a prestação de serviços. Essa é sua atividade preponderante e principal. A Lei, ao franquear a prestadora a possibilidade de contratar outra empresa para contratar, remunerar e dirigir trabalhadores, nada mais fez do legalizar a terceirização da atividade-fim, pelo menos por parte das prestadoras de serviços.

É de se registrar que a quarteirização, na maioria das vezes, é prática usada para burlar direitos trabalhistas em flagrante prejuízo do trabalhador e da coletividade. Nestas circunstâncias, tornava-se imperativa a incidência do art. 9º da CLT. O Tribunal Superior do Trabalho, a propósito, já enfrentou o tema da quarteirização:

[…] QUARTEIRIZAÇÃO. TOMADOR DE SERVIÇOS INTEGRANTE DA INICIATIVA PRIVADA. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. DECISÃO EM CONFORMIDADE COM A SÚMULA Nº 331, IV, DO C. TST. ÓBICES DO ART. 896, § 7º, DA CLT E SÚMULA Nº 333 DO C. TST. Assentou o E. Regional que a Reclamada RBS terceirizou à empresa Pack Four a entrega de seus jornais, a qual, por sua vez, terceirizou o serviço ao Reclamado Wilson Sadzinski – ME, empregador do Reclamante. Assim, o fenômeno havido no caso dos autos é aquele que a doutrina e a jurisprudência denominam como “quarteirização”, a qual é inadmitida no ordenamento jurídico pátrio, por envolver a prática de terceirização pela própria empresa contratada para a prestação de serviços, que para esse fim deveria dispor de empregados próprios, integrantes de seu quadro permanente, mostra-se particularmente nefasta ao empregado, dificultando-lhe, diante da trama de relações empresariais em que se vê enredado, a visualização da destinatária final de seus serviços. Não há nenhuma dúvida, portanto, de que a Reclamada RBS, situando-se na ponta da referida cadeia produtiva, foi a beneficiária final da prestação de serviços e da força de trabalho do Reclamante, por meio da indireta relação mantida com a empregadora deste, subcontratada para o fornecimento de serviços de entrega de jornais. Aplica-se ao caso, portanto, a Súmula nº 331, IV, do C. TST, no sentido de que a tomadora final dos serviços (Reclamada RBS) responde subsidiariamente pelos créditos devidos ao trabalhador. Inviável o processamento do recurso de revista, nos termos do art. 896, § 7º, da CLT e da Súmula nº 333 deste Tribunal. Agravo de instrumento de que se conhece e a que se nega provimento. (AIRR-1818-52.2012.5.12.0019, Relatora Desembargadora Convocada: Jane Granzoto Torres da Silva, Data de Julgamento: 03/12/2014, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 05/12/2014) (GN)

Agora, com a aprovação da Lei, fica superado o posicionamento de que essa medida constitui fraude e acarreta responsabilidade solidária ou subsidiária das empresas envolvidas, pois, como já dito, a Lei nº 13.429/2017 passou a permitir, expressamente, a quarteirização.

Com isso, importa trazer à baila, sem que com isso se afaste do tema nevrálgico proposto, as considerações do professor de Economia da Universidade de Harvard, David Weil, em sua obra “The Fissured Workplace”, trata dos efeitos deletérios advindos da terceirização.

Diz que o autor que a terceirização dá origem ao que ele chamade “local de trabalho fissurado ou dividido” (fissured workplace ou splitting-off). Segundo referido autor, as grandes corporações têm se esquivado de seu papel como empregadores diretos por meio da terceirização de trabalho para as pequenas empresas que, por sua vez, competem ferozmente entre si. O resultado é inevitável: diminuição de salários, erosão de benefícios, péssimas condições de saúde e segurança inadequadas, e cada vez maior desigualdade de renda.

Prosseguindo, afirma que, apesar de abrir mão do controle direto dos subcontratados, fornecedores e franquias, as grandes empresas descobriram como manter os padrões de qualidade e proteger a reputação da marca. Elas produzem produtos e serviços de marca sem o custo de manutenção de uma força de trabalho cara. Mas do ponto de vista dos trabalhadores, esta estratégia lucrativa significou a estagnação dos salários e benefícios e um padrão de vida mais baixo.

Com uma visão precisa, David Weil afirma que hoje a empresa cujo logotipo está na camisa de trabalho do empregado ou crachá de identificação pode não ser a da empresa que recruta, contrata, administra, disciplina e às vezes até paga. Esta fratura da relação básica empregador-empregado está reformulando vidas e indústrias. Por fim, argumenta persuasivamente que o alargamento da desigualdade de renda tem menos a ver com as inovações tecnológicas e mais a ver com inovações organizacionais.

Em consequência da sistemática imposta, a terceirização fragmenta em cada empresa os trabalhadores, opondo efetivos e terceirizados, estes se sentindo – não sem alguma razão – inferiores àqueles, e ameaçando veladamente seu lugar.

Paul Mason lembra que, mais de duzentos anos atrás, o jornalista John Thelwall alertou os homens que construíram as fábricas inglesas de que eles tinham criado uma nova e perigosa forma de democracia: “cada grande oficina e manufatura é uma espécie de sociedade política, que nenhum ato do Parlamento pode silenciar e nenhum magistrado dispersa”. [3]

O fenômeno da terceirização, no entanto, depaupera a democracia nas fábricas, pois, como já dito, pulveriza qualquer espírito de solidariedade entre os trabalhadores. Hoje, a força de trabalho expandida massivamente no mundo ainda forma o “proletrariado”, mas não mais pensa, nem age como um. A reestruturação produtiva, a reengenharia dos fluxos operacionais, a terceirização e, em sua, toda sistemática imposta, fragmenta em cada empresa os trabalhadores, opondo efetivos e terceirizados, estes se sentindo – não sem alguma razão – inferiores àqueles, e ameaçando veladamente seu lugar. Desse modo, na precisa expressão doutrinária, é possível reunir sem unir. [4]

Por tudo isso, pode-se afirmar que a proposta de modernização da legislação, em especial no que toca à prática da terceirização, terá como consequências a a precarização das condições de trabalho; a fragilização da organização coletiva dos empregados em razão da pulverização/atomização dos mesmos; a dispersão da atuação sindical; a discriminação entre efetivos e terceirizados; a fissura da relação de trabalho; dentre várias outras nefastas práticas laborais.

É preciso, portanto, que a classe trabalhadores se dê conta de que está sendo vendido a ela um sonho que jamais poderá realizar, qual seja, a de viver um futuro melhor, baseado no pleno emprego e com o respeito ao valor social do trabalho, preconizado na promessa Constitucional de 1988.

 

[1] AMADO, João Leal. Dinâmica das relações de trabalho nas situações de crise. Disponível em: http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/coloquiodtotrabalho2009_lealamado.pdf

[2] WEIL, David. The fissured workplace: why work became so bad for so many and what can be done to improve it. Boston: Harvard University Press, 2014.

[3] MASON, Paul. Pós-capitalismo: um guia para o nosso futuro. [trad.: José Geraldo Couto]. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras: 2017, p. 19.

[4] VIANA, Marco Túlio; DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder Santos. Terceirização – aspectos gerais: A última decisão do STF e a Súmula 331 do TST. Novos Enfoques. Rev. TST, Brasília, vol. 77, nº 1, jan/mar 2011. p. 54.

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