A condenação internacional do estado brasileiro por práticas análogas à escravidão e a indeferença do legislativo com a edição do pl 6.442/2016

FAZENDA BRASIL VERDE: A CONDENAÇÃO INTERNACIONAL DO ESTADO BRASILEIRO POR PRÁTICAS ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO E A INDEFERENÇA DO LEGISLATIVO COM A EDIÇÃO DO PL 6.442/2016

 

Roberta de Oliveira Souza

Advogada graduada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Pós graduada pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho

 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou, em 20 de outubro de 2016, a denúncia feita em face do Estado brasileiro no tocante à prática de trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde situada no Estado do Pará.

O rol que virá é um roteiro macabro já bastante conhecido na história brasileira. Ele corresponde a uma certa “ciência” do aliciamento para a escravidão moderna da população masculina vulnerável, que tem sua contra-face feminina na escravidão sexual.

 

ï        Os trabalhadores eram aliciados no Piauí por um ‘gato’ que lhes prometia melhores condições de vida. A maioria dos trabalhadores aliciados eram homens, entre 16 e 45 anos, todos de pouca instrução e em situação de extrema miséria. Viajavam por 3 dias em caminhões junto a animais em uma situação de imensa humilhação.

ï        Ao chegar na fazenda já estavam inundados em dívidas, quer devido ao transporte, quer devido à alimentação, bem como aos instrumentos de trabalho que lhes eram fornecidos.

ï        A alimentação era de péssima qualidade. As moscas voavam ao ar livre sobre o “banquete”.

ï        A água não era potável. Os trabalhadores bebiam a mesma água que era servida aos animais.

ï        As jornadas eram exaustivas, acima de 12 horas diárias, com exceção dos domingos.

ï        A vigilância era ostensiva e armada e as ameaças constantes.

ï        Os salários eram irrisórios. As dívidas aumentavam sistematicamente.

ï        Os trabalhadores eram obrigados a comprar tudo no armazém da fazenda a preços exorbitantes em um sistema conhecido como truck system, peonaje ou sistema de barracão.

ï        A Fazenda encontrava-se em local isolado, de modo que para fugir sem serem vistos era preciso adentrar na mata, que possuía animais selvagens.

ï        Os trabalhadores que conseguiram fugir e denunciaram a situação à Policia Federal evidenciaram a vulnerabilidade e o desespero dessas pessoas que viviam em situação desumana e degradante.

 

Marco Antônio, trabalhador rural, resgatado da Fazenda Brasil Verde contou sua experiência relatando que:

“Demorou para me convencerem a ir falar na Corte (Interamericana de Direitos Humanos) o que passei na (fazenda) Brasil Verde. Como a Justiça brasileira não tinha feito nada, por que a Corte ia fazer? Daí me explicaram direitinho e eu aceitei. A audiência foi em Brasília. No dia, os representantes do Estado brasileiro falavam que não houve trabalho escravo na Brasil Verde. Eu falei para o rapaz: ‘Vocês estão dizendo que não houve porque vocês são filhos de papaizinho, queria ver se fosse o filho de vocês lá’. Os fiscais tiravam a gente (do barracão) de madrugada e devolviam à noite. Iam montados numa mula, levando a gente feito gado. A gente comia o que nem porco no Piauí come. Nunca mais saí para trabalhar fora do estado. Tenho medo de ser escravo de novo. Eu me considero livre mas, como disse, não viajo para fora do Piauí. Sou livre que nem animal de cativeiro, que tem medo de pisar no mato.”[1]

 

Francisco Fabiano, de 54 anos, encontrado na mesma situação dos demais trabalhadores rurais hoje afirma que: 

“Sou analfabeto. Fui resgatado com outros companheiros em 2000 pelas pessoas que entendem, que têm um estudo. Porque você sabe, a pessoa analfabeta é nada, né? Se fosse uma pessoa que tivesse minha leitura, teria muita coisa.” [2]

 

E por fim, embora existam diversos outros depoimentos igualmente marcantes, Raimundo Nonato, contou que: “A Federal chegou para tirar a gente do inferno”. E acrescentou que:

“Lembro que a Federal estava em uns três carros brancos. Chamaram a gente para o meio da estrada. Daí perguntaram se a gente tinha vontade de voltar para nossa casa. Respondemos: ‘Temos’. Quiseram saber como era o trabalho. A gente contou tudo, que prometeram um salário mínimo para fazer um serviço leve, das cruzes (sepulturas). Daí todo mundo foi para o barracão com a Federal. Eles retornaram no outro dia para buscar a gente. Foi a primeira e a última vez que fizeram aquilo comigo. Não saí mais para longe. Chego, no máximo, no Maranhão. Lá, fico na casa de um amigo meu. Trabalho de roça, capim, plantação, faço carvão… Trabalho por diária. Lá, ganho entre R$ 35 e R$ 25. E, todo mês, venho visitar minha irmã no Piauí.”[3]

 

Foram quase duas décadas de exploração e escravidão até o julgamento pela Corte Interamericana do caso Fazenda Brasil Verde sem que as autoridades brasileiras se manifestassem de maneira eficaz e efetiva.

O Estado brasileiro tinha o dever de investigar possíveis situações de escravidão, servidão por dívida, tráfico de pessoas, bem como prevenir e coibir condutas atentatórias à liberdade pessoal, à integridade dos trabalhadores e à sua dignidade.

 

No caso Fazenda Brasil Verde, para além da escravidão:

ï        dois menores desapareceram sem que houvesse investigação sobre o assunto, apesar das reiteradas denúncias e persistência da família.

ï        Um processo penal que dizia respeito ao proprietário da Fazenda Brasil Verde desapareceu e não foi reconstituído.

ï        A maioria das ações teve a prescrição decretada.

 

Nesse contexto, a omissão do Estado revela não a cegueira da justiça e das autoridades públicas brasileiras, mas a sua inércia eloquente e descarada.

A autoridades silenciaram diante da miserabilidade humana e se mantiveram indiferentes no tocante à escravidão, como se a vida daqueles trabalhadores valesse menos do que qualquer outra. Fato é que a pactuação entre as elites e o estado omisso e corrupto mantém a desigualdade e banaliza a justiça.

A Corte Interamericana, portanto, reconheceu que o Estado brasileiro contempla uma escravidão estrutural e histórica e permanece omisso em todas as suas esferas internas no combate a tal pratica.

Assim, o nosso país foi responsabilizado por violar as garantias judiciais da duração razoável do processo e da devida diligência, bem como pela violação do direito a não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas, em relação aos artigos 1.1., 3 , 5, 7, 11 e 22 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San Jose da Costa Rica).

Houve notória restrição substantiva da personalidade do trabalhador, bem como da sua integridade pessoal, dignidade e liberdade.

E, apesar de tudo isso, como um escárnio que demonstra o quão enraizada está em nossa vida social a disposição para o uso predatório da mão de obra, herança nefasta da escravidão, em 2016, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.442 de autoria do Deputado Federal Nilson Leitão do PSDB/MT sugerindo prorrogação da jornada para até 12 horas nas hipóteses legalmente previstas nos artigos 7º e 14 e o pagamento do salário integralmente in natura, isto é, por meio de bens, tais como moradia e alimentação (art. 3º, caput, do PL 6.442/2016).

Entretanto, cabe que ressaltar que o Brasil ratificou, em 1957, as Convenções 95 e 99 da OIT[4] que dispõe que o salário, ao menos parcialmente, deve ser pago em pecúnia[5].

Outrossim, tais normas possuem caráter supralegal por se tratarem de normativa atinente a direitos humanos, vigentes no território nacional desde 25 de abril de 1958.

Desse modo, as referidas convenções são, a priori, capazes de derrogar a legislação ordinária que lhe seja contrária, a exemplo do art. 3º do PL 6.442/2016, caso aprovado.

Por isso, enquanto o Brasil não parar para discutir, se conscientizar e pagar a conta dos anos de escravidão que remontam à fundação da nossa pátria, a sociedade se manterá indiferente à escravidão estrutural e histórica brasileira. É por isso que é preciso fomentar o debate, conscientizar a sociedade sobre o que está sendo proposto, para não haja um retrocesso social análogo à revogação da Lei Áurea[6], de 1888.

CRÉDITOS AO FOTÓGRAFO FABRICE MONTEIRO: 

“Você pode falar com os corações das pessoas misturando fatos e arte.”

Fabrice acredita ser um fotográfo jornalista e da moda, que com a sua arte aborda questões sociais como o genocídio e a escravidão, além de temas ambientais. Dentre as magníficas exibições do artista as que mais me chocaram foram “The Prophecy” e “Marron”, sendo que esta última é a que mais se relaciona com o conteúdo desse artigo.

“Marron is a beautiful nightmare”.

Todas as fotos tem embasamento histórico no uso selvagem da mão de obra, através do grilão, usado para subjugar e punir os escravos. Fabrice nasceu em Benim e hoje mora no Senegal. Seu trabalho envolve viajar pelo território africano em busca de formas de expressar a realidade escravocrata e de reavivar na mentalidade social fatos que não podem ser esquecidos.

https://fabricemonteiro.viewbook.com/marrons

https://fabricemonteiro.viewbook.com

 

REFERÊNCIAS:

Sentença final emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca do caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde” contra o Estado brasileiro prevista no site:

http://www.itamaraty.gov.br/images/Banco_de_imagens/Sentenca_Fazenda_Brasil_Verde.pdf

Projeto de Lei 6.442/2016 cuja íntegra pode ser visualizada em:

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2116421 

Os depoimentos dos trabalhadores resgatados podem ser visualizados com maior profundidade em:

http://reporterbrasil.org.br/brasilverde/depoimentos.html

[1] http://reporterbrasil.org.br/brasilverde/depoimento_marcos_antonio.html

[2] http://reporterbrasil.org.br/brasilverde/depoimento_francisco_fabiano.html

[3] http://reporterbrasil.org.br/brasilverde/depoimento_raimundo_nonato.html

[4] Decreto n. 41.721, de 25.6.57

[5] Em dinheiro.

[6] Menção semelhante foi feita anteriormente pelo procurador geral do trabalho Ronaldo Fleury em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/pl-do-trabalho-rural-201crevoga-a-lei-aurea201d-diz-procurador

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